A causa e o efeito de MV Bill

sexta-feira, 18 de junho de 2010 | Published in | 0 comentários

A causa e o efeito de MV Bill

Guilherme Brendler, via Jornal do Comércio do dia 17/06/2010. Acesso aqui.


Rap é a abreviatura de rhythm and poetry. As palavras em inglês significam ritmo e poesia, dois elementos que fazem parte de um estilo musical determinado a “jogar no ventilador” temas que a sociedade acha melhor não discutir. Questões como racismo, violência, abuso policial, desigualdade social, prostituição, entre outras, são debatidas pelas artes, mas de maneira tímida. Na música, apenas um estilo se propõe à contestação social: o rap. Um dos grandes ícones do gênero musical no País é o carioca MV Bill que vem a Porto Alegre apresentar seu quarto disco, Causa e efeito, hoje, a partir das 23h, no bar Opinião (José do Patrocínio, 834). O valor dos ingressos varia entre R$ 25,00 e R$ 35,00.


Nascido na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, o rapper se dedica tanto à música quanto a inúmeros projetos sociais através da Central Única das Favelas (Cufa). Como um dos fundadores da organização que faz projetos ligados à política, ao esporte, à música e à dança, ganhou o título de uma das dez pessoas mais militantes do mundo nos últimos dez anos. Esse prêmio foi concedido pela Unesco, no Fórum Mundial de Cultura, em Barcelona.


O músico conta que o público gaúcho não se diferencia dos outros no País: “A plateia não é mais composta exclusivamente pelo público do movimento hip-hop. Hoje, o público é bem mais eclético, com a turma do skate, a galera que curte rock, e o pessoal do reggae. Eles gostam de rap sem se preocupar com os clichês que o estilo carrega, como andar com uma calça larga, usar boné e ter cara de mau”. A origem do hip-hop vem das ruas, impulsionada pelas camadas mais pobres norte-americanas nos anos 1970. Espalhou-se pelos países onde a injustiça social é tão forte quanto a racial, como acontecia (e acontece) no Brasil. “É nesses lugares que ele tem força para amplificar a voz dessas comunidades humildes. Mas o rap está com uma linguagem universal que interage com públicos de outras áreas, assim como surge em lugares diferentes das favelas. Não é necessário ser de origem pobre para fazer rap. Vejo jovens que não têm uma realidade social tão sofrida, mas que têm talento para fazer música nesse estilo”, afirma o cantor.


A participação do músico e ativista social em outras artes foi muito bem-sucedida. Na literatura, publicou sua primeira obra em 2005. Cabeça de porco - em conjunto com o produtor e também fundador da Cufa, Celso Athayde, e com o cientista político Luiz Eduardo Soares - foi um sucesso tremendo. Também com Athayde, escreveu Falcão - meninos do tráfico, trabalho realizado inicialmente em documentário e de enorme repercussão na mídia brasileira e internacional.


No cinema, MV Bill estreia como ator em Sonhos roubados, longa-metragem da diretora Sandra Werneck, que conta a história de jovens da periferia que enxergam na prostituição a única forma de sobrevivência. No repertório musical do compositor carioca os temas femininos são uma constante, como no caso da faixa Mulheres, do novo CD, Causa e efeito. O rapper afirma que durante muito tempo vivenciou de perto as dores sentimentais e existenciais pelas quais as mulheres da periferia passam: “Morei alguns anos com a minha mãe e minhas duas irmãs. Então, eu percebi como o mundo tem uma visão machista da realidade e cobra muito das mulheres. Acho que o rap, um estilo musical que se propõe a informar e a buscar a inclusão das minorias, não pode ser cúmplice da submissão das mulheres que, assim como os homossexuais, têm muito a dizer”.


Mensageiro erudito


Determinado a fazer mais do que entreter o público, MV Bill busca ajudar no combate ao crack, ao racismo e à desigualdade social no Brasil.


JC - Panorama - Ainda existem brasileiros que consideram o rap música de bandido?


MV Bill - Sim. Tem um setor da sociedade que dá ao rap um lado negativo e até talvez alguns grupos musicais contribuam para isso. Mas acho que generalizar é uma maldade com quem faz um trabalho bacana, com uma linguagem inteligente, mandando ideias positivas nas letras. E quando falam de problemas sociais, fazem isso de uma maneira construtiva, não revanchista.


Panorama - Existe a possibilidade de misturar rap com música erudita?


MV Bill - Eu venho fazendo isso, mas em um formato que facilite a apresentação. Assisti ao filme O último imperador e fiquei impressionado com a trilha sonora que é de um maluco chamado [Ryuichi] Sakamoto, um pianista japonês. Gostei dos acordes em violino e pedi para usar o arranjo que está em Só Deus pode me julgar (faixa 3 do CD Declaração de guerra). Depois da permissão do Sakamoto, a gente começou a orquestrar várias músicas pelo teclado. Se você reparou, existem três faixas do novo disco que têm acordes de violino.


Panorama - A sigla MV do teu nome artístico vem de “mensageiro da verdade”, apelido que tu ganhaste quando começou a fazer música. Além de ti, quais são os outros mensageiros da verdade da música nacional?


MV Bill – Na música? Não consigo destacar ninguém. Mas na surdina, fora do segmento “palco principal”, tem muita gente boa. Um cara do Ceará, chamado Rapadura, é muito bom. Ele mistura rap com baião com uma originalidade que não se limita ao chapéu de palha e à sandália de couro. É o som que eu mais tenho ouvido na atualidade. No Rio de Janeiro existe um maluco chamado Romeu R3, que também faz um rap muito bom. No Sul, tem a rapaziada da Rafuagi, que mistura rap com música “gaudéria”. Tem uma galera maneira fazendo um som maravilhoso, mas que precisa de espaço para se apresentar.


Panorama - Através da Cufa, tu tens trabalhado em campanhas contra o uso do crack. Mas o poder devastador do álcool não é subestimado pela sociedade brasileira?


MV Bill - O álcool é negligenciado porque é uma droga legalizada e gera muita renda e impostos. Mexer com o álcool significa mexer na economia e no bolso de gente importante. Por isso a vista grossa. Existe a merla, que tem um efeito ainda pior, mas felizmente se tem acesso restrito no Brasil. De fato, a droga que tem destruído grande parte da juventude brasileira é o crack.


Panorama - E o que o Estado brasileiro tem feito contra isso?


MV Bill - Em termos de políticas públicas contra o crack, absolutamente nada. O que se oferece aos dependentes é apenas o tratamento dos sintomas. Para se ter uma ideia, em São Paulo, uma das maiores metrópoles do mundo, existe um único local que possui apenas 60 vagas para o tratamento de viciados. Se na maior cidade do Brasil é assim, imagina como funciona nas regiões mais remotas do País.


Panorama - Já tens candidato à presidência da República? O que vai influenciar a tua escolha?


MV Bill - Ainda não, quero conhecer todas as propostas. Quero ver o que se tem de políticas públicas para resolver os assuntos mais urgentes. Um deles é o crack. Outro tema que para mim pode ser o grande diferencial é a educação, que é capaz de modificar os índices de violência, preconceito, renda, racismo, entre outros. É um discurso batido, uma solicitação antiga, mas enquanto não houver educação de qualidade para todos, vamos continuar caminhando de forma capenga. (GB)

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